sábado, 30 de junho de 2012



Desacato: muito além da falta de educação

No dia 7 de maio, a comissão de juristas responsável por elaborar o anteprojeto do Código Penal decidiu, por maioria de votos, sugerir a retirada do crime de desacato da legislação brasileira. A ideia sugerida pelo anteprojeto é fazer com que o desacato seja absorvido em um parágrafo do crime de injúria. Quem praticar injúria contra servidor público em razão de suas funções pode ter a pena dobrada.

A proposta ainda deve ser votada no Congresso Nacional, mas tem grande chance de ser aprovada. Segundo o presidente da comissão, ministro Gilson Dipp, os organismos internacionais ligados à defesa de direitos humanos repudiam a tipificação do crime de desacato, que vem sendo usado historicamente como um ato de coação do estado em relação ao cidadão.

Segundo o professor Lélio Braga Calhau, estudioso do tema, em sua obra “Desacato”, há uma resistência do Ministério Público na aplicação desse tipo penal em um grande número de ocorrências. É que muitas vezes não há desacato propriamente dito nas circunstâncias que o envolve, mas abuso de autoridade. O agente público provoca uma situação ou lança no boletim de ocorrência uma agressão que nunca existiu.

Atualmente, a pena para o crime de desacato a servidor no exercício de sua função ou em razão dela é de seis meses a dois anos de detenção ou multa. Com a mudança, se o crime for classificado como injúria, a pena será de seis meses a um ano e multa. Se considerado injúria qualificada, a pena será de até três anos e multa.

Com a aplicação da Lei 10.259/01, esse crime passou para a competência dos juizados especiais criminais, podendo o réu, nas condições do artigo 76 da Lei 9.099/95, ser beneficiado com o instituto da transação penal (HC 22.881). Isso significa que o réu pode fazer um acordo para o processo criminal não seguir, desde que cumpra determinadas condições estabelecidas em juízo.

Menosprezo

Segundo entendimento do STJ, desacato significa menosprezo ao funcionário público no exercício de sua função e não se confunde com a falta de educação (HC 7.515). É um crime que não possibilita retratação, pois dirigido contra o estado.

Segundo Calhau, a ofensa pode ser qualquer palavra ou ato que acarrete vexame, desprestígio ou irreverência ao funcionário. A pessoa investida da função pública não precisa estar diretamente em frente do agressor, mas pode estar separado por uma divisória, um pequeno obstáculo ou por um pequeno grupo de pessoas, bastando que ela veja ou ouça a ofensa.

O ministro Luiz Vicente Cernicchiaro esclareceu, no julgamento do habeas corpus, que o crime de desacato exige um elemento subjetivo voltado para a desconsideração. “Não se confunde apenas com o vocabulário grosseiro”, ressaltou o ministro. Uma palavra mal-educada proferida no momento de exaltação é incompatível com o dolo exigido para a tipificação do crime.

Liberdade de expressão

Segundo o professor Calhau, avaliar o crime de desacato é problemático quando esse passa a ser um instrumento de arbítrio do estado para coibir a liberdade de expressão. Sua criminalização deve surgir de um ponto de equilíbrio em que se preservem os interesses da administração pública e o direito de crítica.

O ministro Nilson Naves apontou a dificuldade de encontrar esse equilíbrio ao julgar um habeas corpus na Quinta Turma (HC 104.921). Ele se utilizou da frase atribuída ao ensaísta francês Montaigne para justificar o emprego do mau uso das palavras em determinadas situações. “A palavra é metade de quem a pronuncia, metade de quem a escuta”, resumiu.

No mesmo julgamento, o ministro também citou Oscar Wilde, para quem “se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio nesse mundo”. E o ditado popular que assinala que “a palavra foi dada ao homem para ocultar seu pensamento”. No crime de desacato, muitas vezes, a agressão vai além das palavras.

Rasgar documentos

O desacato pode surgir, por exemplo, de um advogado descontente com uma decisão judicial. Segundo jurisprudência do STJ, a imunidade conferida pelo estatuto da OAB não acoberta advogado para desacatar servidor no fórum e sair atirando ao lixo documento assinado por juiz (RHC 4.007).

A imunidade não acoberta ainda os excessos de linguagem desnecessários e desonrosos dirigidos a magistrado ou promotor (RHC 923). Por isso, nesse caso, as expressões ofensivas contidas em petições configuraram crime contra a honra em ação penal pública condicionada.

O STJ entende que não se caracteriza o desacato quando há exaltação mútua de ânimos, com troca de ofensas. Em um de seus julgados, a Quinta Turma considerou que o tipo penal exige o dolo, intenção de ultrajar ou desprestigiar a função pública, não se configurando o tipo se houve discussão acalorada. No caso julgado, houve troca de ofensas entre o réu e o escrivão, sem se saber quem deu início às agressões (REsp 13.946).

Indignação

A reação indignada do cidadão em repartição pública, onde esbarra com intolerância de servidor ou em situações de protesto, não é desacato para a jurisprudência do STJ. A Quinta Turma decidiu em um processo que a indignação é arma do cidadão contra a má prestação de serviços em quaisquer de suas formas, quaisquer que sejam os agentes estatais (RHC 9.615).

Segundo o ministro Edson Vidigal, relator do habeas corpus julgado, sobre o caso em que um policial acusou um homem de desacato, o estado pode ser eficiente ou não dependendo do nível de cidadania dos que pagam impostos. “Pagar impostos e conformar-se, aceitando as coisas como sempre estão, em suas mesmices, implica aumentar o poder dos mandantes e seus mandados, ampliando-se a arrogância de todos em todas as esferas da administração.”, disse.

Exercício da função

O exercício da função pública é condição essencial para que haja o crime de desacato, mesmo que seja exercida de forma temporária.

No julgamento de um habeas corpus, o réu teve prisão em flagrante decretada por desobediência após ter sido intimado, em um dia de feriado, por oficial de Justiça que não tinha sido regularmente nomeado (RHC 10.015).

A Quinta Turma entendeu que, mesmo que o oficial não tenha prestado concurso para o cargo, ele estava no exercício da função pública e deveria, por isso, ser respeitado. Segundo o ministro Felix Fischer, para o direito penal, o conceito de funcionário público é amplo. O artigo 327 considera funcionários públicos quem, mesmo transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

Em caso semelhante, o réu sustentava ausência de justa causa para a ação penal por ser a ofendida empregada prestadora de serviço (RHC 9.602). Segundo o ministro Nilson Naves, o exercício da função pública caracteriza a condição de funcionário público perante o direito penal.

Desobediência

O crime de desobediência está previsto pelo artigo 330 do Código Penal e não se confunde com o desacato. Segundo o professor Calhau, quando o agente, além de desobedecer à ordem proferida pelo funcionário, também se utiliza de violência ou ameaça, a conduta se ajusta ao tipo resistência, previsto no artigo 329 do Código Penal.

De acordo com Calhau, o desacato difere da resistência, já que nesta a violência ou ameaça visa à não realização de um ato de ofício, ao passo que naquele tem por finalidade desprestigiar a função exercida pelo funcionário.

No crime de desacato, conforme a jurisprudência, é imprescindível a existência do nexo causal. Um desentendimento na fila de um aeroporto envolvendo um juiz, por exemplo, não pode ser enquadrado nesse tipo penal por não ter nenhuma relação com a função jurisdicional.

Segundo a relatora de um habeas corpus julgado, ministra Laurita Vaz, “para a perfeita subsunção da conduta ao tipo, o que se perquire é se foi dirigida em razão da função pública exercida” (HC 21.228).

Bate-boca em CPI

O crime de desacato, historicamente, surgiu para proteger servidores públicos no exercício da função contra a atuação de particulares. Mas há casos em que as agressões envolvem servidores, às vezes, de mesma função hierárquica.

Exemplo disso foi o julgamento do habeas corpus relativo ao processo em que o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, foi acusado de desacatar parlamentares, em decorrência de um depoimento em CPI na Assembleia Legislativa, em 2006.

O secretário havia sido convocado para prestar esclarecimentos sobre as medidas adotadas para investigar e punir os responsáveis por crimes praticados por policiais militares no combate aos atentados promovidos pela organização criminosa PCC. O depoimento, entretanto, resultou numa série de constrangimentos.

Segundo a denúncia, Saulo teria se portado de forma inadequada ao ensaiar passos de dança e batucar na mesa na sessão da CPI. O secretário foi acusado de desviar o olhar propositadamente do interlocutor enquanto era inquirido e fazer gestos obscenos em uma das situações.

Mau comportamento

Os ministros da Sexta Turma não analisaram a existência de dolo na conduta do réu, mas a maioria julgou haver indícios suficientes para o prosseguimento da ação penal (HC 104.921).

De acordo com a denúncia, o secretário teria dito a um dos deputados que “não daria para explicar para criminoso como a polícia atua”. Quando o presidente da sessão retirou o microfone de sua mão, teria se levantado da cadeira e dado uma volta em torno de si mesmo, “simulando estar disponível para ser revistado ou detido”.

O secretário foi denunciado por desacato e ingressou no STJ pedindo o trancamento da ação penal. A defesa alegou que, para o funcionário público ser sujeito ativo de desacato, é necessário que ele esteja despido da qualidade funcional ou o fato tenha sido cometido fora do exercício de suas funções.

Por três votos a dois, a Sexta Turma entendeu que o réu poderia responder pelo crime de desacato independentemente da hierarquia, pois o que se busca na lei é o prestígio da função pública. “Se o bem jurídico é o prestígio da função pública, não se compreende como possa haver lesão apenas quando a conduta é praticada por particular”, ressaltou o ministro Og Fernandes.


Supremo veta brecha na interpretação de estupro

O Supremo Tribunal Federal decidiu que relação sexual com criança de dez anos é estupro, e não pode ser qualificado como algo diferente.

A decisão foi tomada pela 1ª Turma do STF por unanimidade, em maio, ao acompanhar o voto da ministra Rosa Weber.

Estava em julgamento habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de um paranaense condenado a 8 anos e 9 meses por estupro e atentado violento ao pudor contra a enteada, então com dez anos, de 2003 a 2004.

Até 2009, o Código Penal considerava que o estupro deveria ser cometido mediante violência, e que ela era presumida quando se tratava de vítimas menores de 14 anos. O artigo foi revogado e a lei atual não cita mais violência, ou seja, não é preciso prová-la.

"Não é possível qualificar a manutenção de relação sexual com criança de dez anos de idade como algo diferente de estupro ou entender que não seria inerente a ato da espécie a violência ou a ameaça", diz o acórdão, publicado no dia 12.

Essa decisão contrasta com a absolvição pelo Superior Tribunal de Justiça, em março, de um acusado de estuprar garotas de 12 anos. O STJ entendeu que a presunção de violência não seria absoluta, pois as meninas eram prostitutas. O caso ainda tramita no STJ.

O entendimento do STJ foi de que a violência era relativa -dependia de cada caso. Ou seja, poderia ser questionada.

A decisão do STJ foi criticada, entre outros, pelos ministros Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos, e José Eduardo Cardozo, da Justiça. O STJ afirmou, na ocasião, que "apenas permitiu que o acusado possa produzir prova de que a conjunção ocorreu com consentimento".

FREDERICO VASCONCELOS
DE SÃO PAULO

Formação de quadrilha. Associação permanente de agentes. Não comprovação.
Apelação Criminal nº 1.0428.05.000643-9/ 001-Monte Alegre de Minas-MG
TJMG - 1ª Câmara Criminal
Rel. Des. Silas Vieira
Data do julgamento: 31/1/2012
Votação: unânime
Formação de quadrilha - Citação por edital - Réu que estava em local incerto e não sabido - Nulidade não demonstrada - Condenação - Impossibilidade - Ausência de provas da associação permanente dos agentes.
Não há falar em nulidade da citação por edital se, ao tempo da busca para a prática do ato, o réu encontrava-se em local incerto e não sabido. Impossível a condenação pelo delito do art. 288, parágrafo único, do Código Penal, se ausentes provas da associação permanente dos agentes para o cometimento de crimes diversos.
Receptação. Autoria não comprovada. Absolvição.
Apelação Crime nº 70046914974-Caxias do Sul-RS
TJRS - 7ª Câmara Criminal
Rel. Des. José Conrado Kurtz de Souza
Data do julgamento: 8/3/2012
Votação: unânime

Apelação criminal - Crimes contra o patrimônio - Receptação - Autoria e dolo não comprovados - Princípio pro libertate - Absolvição mantida.
Tendo em vista a dificuldade de aferição do dolo nos crimes de receptação, as circunstâncias (objetivas) que “circundam” o fato tomam especial relevo de avaliação da conduta do agente. A probatória, todavia, tem de expor elementos seguros que autorizem visualizar a ponte fática entre a suposta subtração e a conduta prevista no art. 180 do Código Penal. No caso dos autos, não há qualquer indicativo seguro, produzido à luz do contraditório, que indique estivesse a res na posse do réu. Nesse contexto, do acervo probatório não se tem como extrair juízo de condenação, salvo forte dose de (desautorizada) presunção, que, evidentemente, não pode militar em desfavor dos réus, lembrando-se que a interpretação na esfera penal deve sempre ter marcada a presença do princípio pro libertate. Por tais motivos, impecável a sentença absolutória, que ora se mantém. Apelação desprovida.

segunda-feira, 18 de junho de 2012


Crime de bagatela. Absolvição.
Apelação Criminal nº 1.0024.10.246254-6/ 001-Belo Horizonte-MG
TJMG - 3ª Câmara Criminal
Rel. Des. Paulo Cézar Dias
Data do julgamento: 31/1/2012
Votação: maioria
Apelação criminal - Furto - Princípio da insignificância ou de bagatela - Absolvição decretada.
1 - O ínfimo valor da res furtiva, sem qualquer repercussão no patrimônio da vítima, à míngua de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pelo art. 155 do CP, não repercute na ordem jurídica a ensejar a reprimenda estatal, pois a irrelevância do resultado implica o reconhecimento da atipicidade da conduta, afetando materialmente a estrutura do delito. 2 - Recurso provido. V.V. Apelação criminal. Furto em estabelecimento comercial. Princípio da insignificância ou bagatela. Não ocorrência. Segurança por meio de vigilância eletrônica. Crime impossível. Não configuração. Condenação mantida. Tentativa. Fator de redução da pena. Decisão não fundamentada. Aplicação da maior fração. Regime de cumprimento da pena. Semiaberto. Substituição da pena. Réu reincidente. Inadmissibilidade.
Lesão corporal leve. Legítima defesa. Absolvição.
Apelação Criminal nº 2010.010998-3-Jucurutu-RN
TJRN - Câmara Criminal
Rel. Des. Rafael Godeiro
Data do julgamento: 23/2/2012
Votação: unânime
Penal e Processual Penal - Apelação criminal - Lesão corporal leve - Pretensão de absolvição por ausência de dolo - Impossibilidade - Provas suficientes de autoria e materialidade do delito praticado (art. 129, § 9º, do CP) - Pretensão de absolvição por legítima defesa - Possibilidade - Provas nos autos indicando a configuração da excludente de ilicitude prevista no art. 25 do CP - Absolvição que se impõe - Incidência do art. 386, inciso VI, do CPP - Pretensão recursal de aplicação do sursis. Prejudicialidade - Sentença reformada.
1 - Dispõe o art. 25 do Código Penal que: “age em legítima defesa quem, se utilizando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. 2 - Evidenciado que o ato praticado pelo réu decorreu de legítima defesa, causa excludente de ilicitude, impõe-se a sua absolvição, com fundamento no art. 386, inciso VI, do CPP. 3 - Conhecimento e provimento da apelação.

Extorsão. Não configuração de vantagem indevida. Absolvição.
Apelação Criminal nº 1.0024.08.141013-6/001-Belo Horizonte-MG
TJMG - 7ª Câmara Criminal
Rel. Des. Agostinho Gomes de Azevedo
Data do julgamento: 1º/3/2012
Votação: unânime
Apelação - Extorsão - Elementar do tipo “vantagem indevida” não configurada - Absolvição mantida - Falsidade ideológica - Ausência de provas aptas a ensejar um decreto condenatório - Absolvição mantida - Recurso não provido.
Para a configuração do crime de extorsão, a vantagem econômica obtida deve ser indevida, pois, se o autor exige o cumprimento de obrigação que para ele é legítima, por ausência de elementar do tipo previsto no art. 158 do Código Penal, não há que se falar em prática do crime de extorsão. Se os indícios que dão conta da prática dos crimes de falsidade ideológica pelo acusado não restaram confirmados ao longo da instrução, ante a inexistência de prova suficiente a alicerçar um decreto condenatório, a manutenção da absolvição é medida que se impõe, na estrita observância do princípio in dubio pro reo. Recurso não provido.

sábado, 2 de junho de 2012


STJ decide que parte não pode desistir de recurso

A decisão foi noticiada nesta terça (29/5), no site do STJ : “Terceira Turma rejeita desistência e decide julgar recurso mesmo contra a vontade das partes”.
No julgamento da questão de ordem , assim se afirmou:
[...], a exegese do art. 501 do CPC deve ser feita à luz da realidade surgida após a criação do STJ, levando-se em consideração o seu papel, que transcende o de ser simplesmente a última palavra em âmbito infraconstitucional, sobressaindo o dever de fixar teses de direito que servirão de referência para as instâncias ordinárias de todo o país. A partir daí, infere-se que o julgamento dos recursos submetidos ao STJ ultrapassa o interesse individual das partes nele envolvidas, alcançando toda a coletividade para a qual suas decisões irradiam efeitos.
Considero corretos esses fundamentos. Entendo, porém, que não deve ser afastado o direito de desistir do recurso, previsto no artigo 501 do Código de Processo Civil.
Tenho insistido, em outros artigos publicados neste espaço, na ideia de que os tribunais superiores exercem função relevantíssima, que extrapola o interesse das partes. Num deles, chamei a atenção para o fato de que a Emenda Constitucional 45/2004 criou um “vácuo” no sistema jurídico, já que inexiste, hoje, unificação da inteligência da norma constitucional, quando esta não tem repercussão geral (o STF julga apenas questões constitucionais com repercussão geral através de recurso extraordinário; o STJ, através do recurso especial, julga apenas questões federais infraconstitucionais). Em outro texto, observei que a criação do requisito da repercussão geral para a questão federal infraconstitucional agravaria o problema, já que, não sendo cabível o recurso especial, a questão federal sem repercussão geral restaria “estadualizada”...
A preocupação, externada pelos ministros da 3ª Turma do STJ, vem ao encontro do que tenho sustentado. De fato, quando determinado tema está em vias de ser examinado pelo STF ou pelo STJ, a sociedade espera que do julgamento se extraiam verdadeiros ensinamentos. Entendo, ao contrário do que pensam alguns, que estamos longe de viver, de fato, em um sistema de precedentes semelhante àqueles observados nos sistemas de common law. A intensa oscilação da jurisprudência, a divergência de entendimentos entre as turmas dos tribunais a respeito de vários assuntos e, talvez como consequência desses dois fatores, a não observância da jurisprudência de tribunais superiores por juízes de primeiro grau e por tribunais locais, são circunstâncias que revelam que a jurisprudência não tem contribuído para a integridade e a coerência de orientação do Direito. A experiência colhida no Direito estrangeiro pode nos ajudar, mas creio que podemos encontrar, no sistema brasileiro, as bases do caminho que devemos percorrer.
Pode-se, com isso, sustentar que as partes não têm direito de desistir do recurso? Penso que não. Entendo que as partes têm, sim, direito de desistir de qualquer recurso, enquanto não iniciado seu julgamento. Entendimento contrário, a meu ver, contrariaria o disposto no artigo 501 do CPC.
Isso não significa, contudo, que, apresentado o pedido de desistência, cessa, automaticamente, a atividade a ser desenvolvida pelo tribunal. Tudo depende da espécie de recurso e da tarefa a ser desempenhada pelo tribunal.
Em se tratando de recurso especial submetido ao regime do artigo 543-C, tenho sustentado entendimento diverso do adotado pelo STJ (escrevi a respeito na obra Código de Processo Civil comentado, publicada pela Editora Revista dos Tribunais). Para este tribunal, não pode a parte desistir do recurso especial selecionado nos termos do artigo 543-C . Entendo, diversamente, que nada impede que aquele que interpôs recurso especial dele desista, nos termos do artigo 501 do CPC. Tal desistência, no entanto, somente deverá ser levada em consideração em relação à segunda “fase” do julgamento do recurso selecionado. Assim, fixada a tese que diz respeito à “questão de direito”, cuja solução poderá ser levada em consideração em relação ao julgamento de diversos outros recursos especiais, poderá o Superior Tribunal de Justiça não conhecer do recurso especial, em razão da desistência. O mesmo ocorre, mutatis mutandis, em relação ao julgamento do recurso extraordinário selecionado, no regime dos artigos 543-A e 543-B do CPC. Ideia parecida foi observada pelo STJ no julgamento de outro recurso especial , em que o tribunal deliberou sobre a tese jurídica, “para efeitos do artigo 543-C, do CPC”, mas, depois, considerou o “recurso especial prejudicado, diante da desistência do autor na ação principal”.
Esse, penso, é o entendimento correto, e que se coaduna tanto com o direito que têm as partes de desistir do recurso, quanto com o dever do STJ de dispor acerca do correto sentido do direito federal infraconstitucional. O projeto de novo CPC, semelhantemente, prevê, em seu artigo 911, parágrafo único, que, “no julgamento de recurso extraordinário cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e no julgamento de recursos repetitivos afetados, a questão ou as questões jurídicas objeto do recurso representativo de controvérsia de que se desistiu serão decididas pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal”.
Entendo que esta mesma orientação aplica-se a outros recursos especiais, ainda que não incida o disposto no artigo 543-C do CPC. Infelizmente, a jurisprudência predominante nos tribunais superiores parece mais se ajustar àquilo que se convencionou chamar de “jurisprudência defensiva”— algo a que todo jurista deve se opor, pois, a meu ver, a doutrina tem a responsabilidade de denunciar a existência de entendimentos jurisprudenciais antidemocráticas, não devendo ser mera “reprodutora de jurisprudência”. Mas, em alguns casos, o STJ tem observado que a função que exerce está acima de burocracias procedimentais, deixando de lado o excessivo rigor formal. Foi assim que o STJ decidiu , por exemplo, que “ostentando a questão federal ventilada no recurso especial relevância jurídica, econômica e social a desafiar o conhecimento do apelo, propicia-se ao STJ que proceda à interpretação final da lei federal e, por conseguinte, se desincumba de sua missão constitucional de assegurar a inteireza do direito federal infraconstitucional”.
Por isso que, mesmo em casos em que não incida o disposto no artigo 543-C, o STJ poderá desempenhar sua missão constitucional, embora resguardando o direito de a parte desistir do recurso especial. Desnecessário impedir que a parte desista do recurso, fazendo letra morta o disposto no artigo 501 do CPC. Basta que o STJ, após firmar a tese jurídica correta — cumprindo, assim, sua tarefa de apontar para o entendimento adequado da norma federal infraconstitucional — considere o recurso especial de que se desistiu prejudicado. Penso que o mesmo deve ser observado pelo STF,mutatis mutandis. Esta orientação, a meu ver, respeita tanto o ofício a ser desempenhado pelos juízes dos tribunais superiores quanto o direito subjetivo da parte de desistir do recurso.