sábado, 17 de dezembro de 2011



A lei seca e o direito do cidadão-consumidor de se locomover livremente

Abrahan Lincoln disse que não se pode mentir o tempo todo, enganando todo mundo. Já Adolf Hitler dizia que qualquer mentira acaba entrando pela goela da multidão hipnotizada, por mais absurda que seja. Podemos acrescentar que, se alguma coisa for feita diuturna e rotineiramente com ares de normalidade, acaba sendo aceita por todos ou ao menos pela maioria como algo natural e, consequentemente, aceito como norma válida.
Os meios de comunicação batem tanto na tecla da chamada lei seca com suas numerosasblitze que, aos poucos, as pessoas vão aceitando o fato como válido. Mas, a verdade é que, do ponto de vista jurídico, isso está longe de ser correto.
Volto a um assunto que tratei em outros lugares mais de uma vez e que, penso, precisa ser compreendido adequadamente pela sociedade. Lembro que não existe uma estratégia bem elaborada para resolver o problema do consumo do álcool no país, conforme mostrei em meu artigo "As bebidas alcoólicas e o consumidor" publicado em 11/8/2011 (clique aqui) neste poderoso rotativo Migalhas1. Aliás, é de se desconfiar da existência de um real interesse em resolver o problema.
Muito bem. Meu amigo Walter Ego diz: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal". E ele complementa perguntando: "Dirigir um veículo é uma atitude suspeita?".
Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava - todos nós sonhávamos - um dia ver a democracia real instituída no Brasil. A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a CF/88 (clique aqui), nossa esperança aumentou: afinal, era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel.
O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. Como estudante de Direito já há 36 anos fico triste e até, diria, um pouco descorçoado. É incrível como o poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu, de vários modos, a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo. As ações policiais, por exemplo, dirigidas por altos escalões, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades.
Veja-se o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra a pessoa de bem. Esta é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque está dirigindo seu veículo. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem. A pessoa apenas está ao volante!
Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento comercial ou nem isso: apenas por estar passando naquele local naquele momento. Um mero acaso. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É abertamente ilegal.
De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de trabalho?
Claro que uma abordagem desse tipo seria legítima se, por exemplo, a pessoa entrasse cambaleando num veículo para dirigi-lo. Esse seria um dado objetivo válido, que geraria suspeita suficiente para a ação. Nesse caso, o policial é testemunha ocular e tem o dever de agir. Ou, então, se o veículo faz ziguezague na rua, é preciso pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo.
Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente, não pode ser abordada e nem se lhe podem impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por exemplo, exigir o teste do bafômetro.
Estar dirigindo um veículo automotor não é, repito, fato jurídico de per si capaz de gerar o direito da autoridade policial exigir um teste – qualquer que seja ele – de que o motorista está embriagado ou ao menos ter ingerido álcool. Daí que, pedir que um motorista que não apresenta nenhum traço, nenhum comportamento suspeito de estar alcoolizado, que faça o teste do bafômetro é abuso de direito e, no caso, abuso de autoridade. Não importa quem seja o motorista.
E, antes de analisar as normas jurídicas envolvidas, gostaria de lembrar um fato irretorquível: o da ineficácia da lei e das ações policiais. Os acidentes com veículos automotores continuam acontecendo em índices alarmantes, com ou sem lei, como têm mostrado os meios de comunicação. (O problema envolve outros pontos: falta de educação, respeito ao próximo, disciplina para vida em sociedade, mudança dos padrões de consumo, limitação da publicidade e dos pontos de venda, como mostrei em meu artigo citado, o aumento da potência dos veículos, etc.). E pior: as blitze não só violam os condutores que não ingeriram álcool e que sem veem obrigados a praticar ato contra sua vontade sem base legal (soprar no bafômetro) como não conseguem alcançar o condutor que esteja embriagado, porque este simplesmente se nega a fazer o teste. Simples assim. Relembremos, então, a questão jurídica.
Em primeiro lugar, leiamos a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro:
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração deálcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do que as autoridades policiais estão adotando. O professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado também no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do referido dispositivo.
Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte da regra legal ("sob influência de qualquer outra substância...") deve valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva "ou" remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.
Dou também outra razão: A própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que passou a ter a seguinte dicção: "Art. 4º- A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". (grifei)
Pergunto: o que significa "estar sob influência"? O professor Luiz Flávio Gomes responde: estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que vai além da existência do álcool no corpo.
No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a direção em ziguezague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão de álcool sem significar perigo concreto, ainda que indeterminado, geraria tipo penal de um crime abstrato, algo inadmitido no direito.
E, em reforço, lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: "dirigir sob influência do álcool". Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos) há que se constatar influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão.
Digo mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode ocorrer um outro crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade (ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09-12-1965). Dentre eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física do indivíduo (art. 3º, "a" e "i").
É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão, como demonstram as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro "Abuso de Autoridade" (publicado pela RT - Editora Revista dos Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).
Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar a autoridade pelo crime de abuso.
No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação a quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordens superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor.
De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse com todas as letras que "sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade judiciária competente; seu descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus subordinados" (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas).
O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo assaltados por bandidos armados, dirigindo motos, automóveis ou à pé mesmo. Em comum a violência e o abandono.
Não posso, como professor de Direito, depois de mais de 36 anos de magistério, ficar tranquilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude Direito, porque ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, ao que assisto todo dia e cada vez mais é o uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base.
Finalizo com uma ironia lembrada por meu amigo Walter Ego: "Enquanto cidadãos de bem são violados dirigindo seus automóveis, ladrões roubam e matam andando sobre bicicletas, como acontece, por exemplo, rotineiramente na cidade do Guarujá".

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* Rizzatto Nunes Desembargador do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.



Cirurgia de emergência realizada ainda no prazo de carência deve ser indenizada
A 1ª turma Recursal dos Juizados Especiais do DF confirmou sentença que condena plano de saúde a pagar R$ 8.479,99 à contratante de plano que realizou uma cirurgia emergencial dentro do prazo de carência, referente às despesas médico-hospitalares que foram comprovadas nos autos.
O plano de saúde alegou que o contrato estabelecia prazos de carência para a realização de consultas, internações e procedimentos. Ainda em sua defesa, apontou que o contrato excluía de cobertura o tratamento de doenças preexistentes.
O juiz Luis Eduardo Yatsuda Arima, relator, considerou abusiva a cláusula contratual que exclui da cobertura do plano de saúde, ainda que durante o prazo de carência, as situações emergiciais em que a vida do paciente seja colocada em risco.
No caso dos autos, restou comprovada a necessidade da cirurgia a que a consumidora foi submetida, bem como a urgência.
Veja abaixo o acórdão.
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Órgão 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal
Processo N. Apelação Cível do Juizado Especial 20100111806983ACJ
Apelante(s) SUL AMÉRICA SEGURO SAÚDE S.A.
Apelado(s) L.A.R.R.C.
Relator Juiz LUIS EDUARDO YATSUDA ARIMA
Acórdão Nº 551.183
EMENTA
PROCESSO CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REEMBOLSO DE DESPESAS MÉDICO-HOSPITALARES. CIRURGIA DE EMERGÊNCIA. RISCO DE VIDA. PLANO DE SAUDE. RECUSA DE COBERTURA. DISPENSA DO CUMPRIMENTO DO PRAZO DE CARÊNCIA. CLÁUSULA ABUSIVA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.
1) È abusiva a cláusula contratual que exclui da cobertura do plano de saúde, ainda que durante o prazo de carência, as situações emergenciais, nas quais a vida do paciente seja colocada em risco, eis que restringe os direitos inerentes à natureza do contrato, impossibilitando a realização plena do seu objeto e frustrando as legítimas expectativas do consumidor quando da contratação do seguro de saúde.
2) No caso dos autos, a necessidade e urgência da cirurgia a que foi submetida a consumidora foram comprovadas pelos documentos que acompanharam a petição inicial. A Lei 9656/98, com a redação dada posteriormente dispõe no seu art. 35-C: “É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos: I – de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente e, II – de urgência, assim entendidos os resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional.” Ademais, dispõe a Lei 9656, art. 12: “São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, seguindo as seguintes exigências mínimas: (...) V – quando fixar períodos de carência (...) c) Prazo máximo de vinte e quatro horas para cobertura dos casos de urgência e emergência. VI – reembolso, em todos os tipos de produtos que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou beneficiados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de 30 dias após a entrega da documentação adequada. Assim, devida a indenização pelos danos materiais sofridos pela parte autora recorrida que arcou com as despesas médico-hospitalares. Certo seria também a condenação por danos morais tendo em vista a dor moral suportada pela autora que teve de arcar com tais despesas, pena de ver-se em risco à sua própria saúde por desídia da parte ré/recorrente que desatendeu o dever obrigacional decorrente da lei anteriormente mencionada. Contudo, como a autora não recorreu do indeferimento dos danos morais, resta apenas neste grau recursal apreciar tão somente a matéria devolvida para reexame, pelo que mantenho a sentença recorrida nos seus próprios termos.
3) RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. Condenada a recorrente ao pagamento das custas e honorários advocatícios em 10% do valor da condenação.
ACÓRDÃO
Acordam os Senhores Juizes da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, LUIS EDUARDO YATSUDA ARIMA - Relator, WILDE MARIA SILVA JUSTINIANO RIBEIRO - Vogal, DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI - Vogal, sob a Presidência da Senhora Juíza WILDE MARIA SILVA JUSTINIANO RIBEIRO, em proferir a seguinte decisão: CONHECIDO. IMPROVIDO. UNÂNIME, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 22 de novembro de 2011
Juiz LUIS EDUARDO YATSUDA ARIMA
Relator

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


STJ
Crime em navio ancorado em porto é de competência da Justiça estadual
A 3ª vara Criminal do Guarujá/SP deverá processar e julgar a ocorrência de homicídio culposo em navio ancorado para carregamento. A 3ª seção do STJ entendeu que o simples fato de o crime ter ocorrido em embarcação de grande porte não atrai a competência da JF de Santos/SP.
Segundo a perícia, dois estivadores foram atingidos enquanto estavam na rampa de acesso à embarcação por duas pranchas metálicas móveis. A amarração teria sido feita de forma inadequada, resultando no rompimento de corrente que atrelava as pranchas ao guincho e causando o acidente.
Para o juiz do Guarujá, o crime ocorrido no carregamento do navio italiano Grande Buenos Aires deveria ser processado pela JF. O juiz da 3ª vara Federal de Santos, porém, divergiu, sustentando que a embarcação não estava em situação de internacionalidade, mas ancorado, e as vítimas não eram nem passageiros nem funcionários do navio. Daí o conflito de competência submetido ao STJ.
O ministro Gilson Dipp concordou com o entendimento do juiz Federal. Segundo o relator, a competência Federal não se configura com o simples fato de o caso ter ocorrido no interior de embarcação de grande porte. "Faz-se necessário que este se encontre em situação de deslocamento internacional ou ao menos em situação de potencial deslocamento", esclareceu.
"O que se depreende dos autos, até o momento, é que a embarcação encontrava-se ancorada, para fins de carregamento, o qual, inclusive, estava sendo feito por pessoas – no caso as vítimas – estranhas à embarcação, visto que eram estivadores e não passageiros ou funcionários desta", concluiu o ministro.