sábado, 17 de dezembro de 2011



A lei seca e o direito do cidadão-consumidor de se locomover livremente

Abrahan Lincoln disse que não se pode mentir o tempo todo, enganando todo mundo. Já Adolf Hitler dizia que qualquer mentira acaba entrando pela goela da multidão hipnotizada, por mais absurda que seja. Podemos acrescentar que, se alguma coisa for feita diuturna e rotineiramente com ares de normalidade, acaba sendo aceita por todos ou ao menos pela maioria como algo natural e, consequentemente, aceito como norma válida.
Os meios de comunicação batem tanto na tecla da chamada lei seca com suas numerosasblitze que, aos poucos, as pessoas vão aceitando o fato como válido. Mas, a verdade é que, do ponto de vista jurídico, isso está longe de ser correto.
Volto a um assunto que tratei em outros lugares mais de uma vez e que, penso, precisa ser compreendido adequadamente pela sociedade. Lembro que não existe uma estratégia bem elaborada para resolver o problema do consumo do álcool no país, conforme mostrei em meu artigo "As bebidas alcoólicas e o consumidor" publicado em 11/8/2011 (clique aqui) neste poderoso rotativo Migalhas1. Aliás, é de se desconfiar da existência de um real interesse em resolver o problema.
Muito bem. Meu amigo Walter Ego diz: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal". E ele complementa perguntando: "Dirigir um veículo é uma atitude suspeita?".
Quando era estudante da graduação em Direito na PUC/SP, nos idos dos anos setenta, sonhava - todos nós sonhávamos - um dia ver a democracia real instituída no Brasil. A ditadura acabou, vieram as eleições livres e diretas e ficamos esperando. Quando surgiu a CF/88 (clique aqui), nossa esperança aumentou: afinal, era o melhor, mais democrático, mais livre e mais claro e extenso texto de garantias ao cidadão jamais estabelecido antes por aqui. Uma luz verdadeira se acendia dentro do túnel.
O tempo passou e se percebe que ainda é difícil estabelecer-se um real Estado Democrático de Direito. Como estudante de Direito já há 36 anos fico triste e até, diria, um pouco descorçoado. É incrível como o poder, em todas as esferas, viola com seus procedimentos as garantias constitucionais. Foi-se a ditadura, mas permaneceu, de vários modos, a mentalidade profundamente enraizada do autoritarismo. As ações policiais, por exemplo, dirigidas por altos escalões, muitas vezes parecem ter como técnica de controle e investigação apenas e tão somente o espalhafatoso instrumento das blitze, que normalmente produzem muito pouco resultado além do espetáculo e de atrapalhar a vida dos cidadãos, que já têm muita dificuldade de se locomover pelas ruas das cidades.
Veja-se o caso da atual e chamada lei seca e das ações praticadas contra a pessoa de bem. Esta é parada na via pública pela polícia, apenas e tão somente porque está dirigindo seu veículo. Pergunto: qual o elemento objetivo e legal que permite esse tipo de abordagem? Nenhum. Não há suspeita, não há comportamento perigoso, não há desvio de conduta nem manobra capaz de causar dano a outrem. A pessoa apenas está ao volante!
Há, apenas, o fato de estar dirigindo um veículo após ter saído de um estabelecimento comercial ou nem isso: apenas por estar passando naquele local naquele momento. Um mero acaso. Isto é, trata-se de uma circunstância corriqueira de exercício da cidadania. Nessas condições a abordagem é ilegal. É abertamente ilegal.
De onde o Estado extrai o direito de evitar a locomoção de um pai de família que sai para jantar com sua esposa ou filhos? Ou com amigos, depois de um árduo dia de trabalho?
Claro que uma abordagem desse tipo seria legítima se, por exemplo, a pessoa entrasse cambaleando num veículo para dirigi-lo. Esse seria um dado objetivo válido, que geraria suspeita suficiente para a ação. Nesse caso, o policial é testemunha ocular e tem o dever de agir. Ou, então, se o veículo faz ziguezague na rua, é preciso pará-lo. Na verdade, se é para fazer blitz, então é muito mais simples manter policiais em cada porta de bar, danceteria, boate, discoteca, rave ou o que seja e impedir que o ébrio entre no veículo.
Mas, se a pessoa está na rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente, não pode ser abordada e nem se lhe podem impingir conduta que ele não se disponha a fazer, sem base objetiva para tanto, como por exemplo, exigir o teste do bafômetro.
Estar dirigindo um veículo automotor não é, repito, fato jurídico de per si capaz de gerar o direito da autoridade policial exigir um teste – qualquer que seja ele – de que o motorista está embriagado ou ao menos ter ingerido álcool. Daí que, pedir que um motorista que não apresenta nenhum traço, nenhum comportamento suspeito de estar alcoolizado, que faça o teste do bafômetro é abuso de direito e, no caso, abuso de autoridade. Não importa quem seja o motorista.
E, antes de analisar as normas jurídicas envolvidas, gostaria de lembrar um fato irretorquível: o da ineficácia da lei e das ações policiais. Os acidentes com veículos automotores continuam acontecendo em índices alarmantes, com ou sem lei, como têm mostrado os meios de comunicação. (O problema envolve outros pontos: falta de educação, respeito ao próximo, disciplina para vida em sociedade, mudança dos padrões de consumo, limitação da publicidade e dos pontos de venda, como mostrei em meu artigo citado, o aumento da potência dos veículos, etc.). E pior: as blitze não só violam os condutores que não ingeriram álcool e que sem veem obrigados a praticar ato contra sua vontade sem base legal (soprar no bafômetro) como não conseguem alcançar o condutor que esteja embriagado, porque este simplesmente se nega a fazer o teste. Simples assim. Relembremos, então, a questão jurídica.
Em primeiro lugar, leiamos a nova redação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro:
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração deálcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
Muito bem. Trata-se de um crime de perigo, mas perigo concreto real, ao contrário do que as autoridades policiais estão adotando. O professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado também no site Migalhas, deixou clara qual deve ser a interpretação do referido dispositivo.
Diz ele que não basta ter ingerido certa quantidade de álcool. É preciso também estar sob influência dele. Isso porque, conforme ensina o professor, a segunda parte da regra legal ("sob influência de qualquer outra substância...") deve valer também para a primeira parte que trata do álcool. E ele está certo, pois a disjuntiva "ou" remete o conteúdo da segundo parte do texto à primeira parte.
Dou também outra razão: A própria lei 11.705 que alterou o CTB assim o diz. O seu art. 7º alterou a lei 9.294/96 modificando a redação do art. 4º-A dessa lei, que passou a ter a seguinte dicção: "Art. 4º- A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". (grifei)
Pergunto: o que significa "estar sob influência"? O professor Luiz Flávio Gomes responde: estar sob influência exige a exteriorização de um fato, de um plus que vai além da existência do álcool no corpo.
No caso em discussão, esse fato seria a direção anormal. No exemplo que dei acima, a direção em ziguezague. Caso contrário, como diz o citado jurista, estar-se-ia violando o princípio constitucional implícito da ofensividade, pois a mera ingestão de álcool sem significar perigo concreto, ainda que indeterminado, geraria tipo penal de um crime abstrato, algo inadmitido no direito.
E, em reforço, lembro, citando mais uma vez o professor, que para a caracterização da infração administrativa, o art. 165 do CTB, também alterado, dispõe: "dirigir sob influência do álcool". Logo, se para a mera infração administrativa (que é o menos) há que se constatar influência, para o crime (que é o mais) com muito maior razão.
Digo mais. Guardados os limites de cada caso de abordagem, pode ocorrer um outro crime: o de abuso de autoridade. A lei 4.898 define os crimes de abuso de autoridade (ironicamente é uma Lei do período autoritário: 09-12-1965). Dentre eles, destaco o atentado à liberdade de locomoção e o atentado à incolumidade física do indivíduo (art. 3º, "a" e "i").
É um crime doloso, que demanda ânimo de praticá-lo e pode se dar também por omissão, como demonstram as várias decisões judiciais condenando administradores públicos em geral elencadas pelos Profs. Gilberto e Vladimir Passos de Freitas no livro "Abuso de Autoridade" (publicado pela RT - Editora Revista dos Tribunais, 9ª, ed, SP:2001).
Assim, se o indivíduo não está praticando nenhum delito, a autoridade fiscal ou policial não pode levá-lo preso. O crime pode estar sendo cometido tanto pela autoridade que lhe prende, como pela que não lhe solta. É possível, pois, processar a autoridade pelo crime de abuso.
No assunto atual das blitze de lei seca, pode surgir uma dúvida em relação a quem está praticando o abuso, pois o policial civil ou militar está cumprindo ordens superiores. Nesse caso, se a ordem não é manifestamente ilegal, quem comete o crime é o comandante da operação ou seus superiores, que pode chegar até mesmo ao Secretário de Estado responsável, pois desses se espera o cumprimento estrito do sistema constitucional em vigor.
De todo modo, deixo anotado que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, disse com todas as letras que "sendo exigível dos agentes da lei o conhecimento da garantia constitucional de que ninguém, salvo o flagrante, pode ser detido e preso a não ser por ordem da autoridade judiciária competente; seu descumprimento configura abuso de autoridade manifesto, que não exime de responsabilidade o superior e seus subordinados" (Decisão publicada na revista RJTJRS 170/138 e citada na obra dos irmãos Passos de Freitas).
O trágico nessa história é que, enquanto cidadãos de bem são abordados por policiais armados em alguns pontos das cidades, em outros pontos cidadãos de bem estão sendo assaltados por bandidos armados, dirigindo motos, automóveis ou à pé mesmo. Em comum a violência e o abandono.
Não posso, como professor de Direito, depois de mais de 36 anos de magistério, ficar tranquilo com o que vejo. Aliás, nem eu nem ninguém que estude Direito, porque ao invés de ver surgir o tão almejado Estado de Direito Democrático, ao que assisto todo dia e cada vez mais é o uso de um modelo de ação estatal que não tem na lei maior, infelizmente, sua base.
Finalizo com uma ironia lembrada por meu amigo Walter Ego: "Enquanto cidadãos de bem são violados dirigindo seus automóveis, ladrões roubam e matam andando sobre bicicletas, como acontece, por exemplo, rotineiramente na cidade do Guarujá".

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* Rizzatto Nunes Desembargador do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.



Cirurgia de emergência realizada ainda no prazo de carência deve ser indenizada
A 1ª turma Recursal dos Juizados Especiais do DF confirmou sentença que condena plano de saúde a pagar R$ 8.479,99 à contratante de plano que realizou uma cirurgia emergencial dentro do prazo de carência, referente às despesas médico-hospitalares que foram comprovadas nos autos.
O plano de saúde alegou que o contrato estabelecia prazos de carência para a realização de consultas, internações e procedimentos. Ainda em sua defesa, apontou que o contrato excluía de cobertura o tratamento de doenças preexistentes.
O juiz Luis Eduardo Yatsuda Arima, relator, considerou abusiva a cláusula contratual que exclui da cobertura do plano de saúde, ainda que durante o prazo de carência, as situações emergiciais em que a vida do paciente seja colocada em risco.
No caso dos autos, restou comprovada a necessidade da cirurgia a que a consumidora foi submetida, bem como a urgência.
Veja abaixo o acórdão.
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Órgão 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal
Processo N. Apelação Cível do Juizado Especial 20100111806983ACJ
Apelante(s) SUL AMÉRICA SEGURO SAÚDE S.A.
Apelado(s) L.A.R.R.C.
Relator Juiz LUIS EDUARDO YATSUDA ARIMA
Acórdão Nº 551.183
EMENTA
PROCESSO CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. REEMBOLSO DE DESPESAS MÉDICO-HOSPITALARES. CIRURGIA DE EMERGÊNCIA. RISCO DE VIDA. PLANO DE SAUDE. RECUSA DE COBERTURA. DISPENSA DO CUMPRIMENTO DO PRAZO DE CARÊNCIA. CLÁUSULA ABUSIVA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.
1) È abusiva a cláusula contratual que exclui da cobertura do plano de saúde, ainda que durante o prazo de carência, as situações emergenciais, nas quais a vida do paciente seja colocada em risco, eis que restringe os direitos inerentes à natureza do contrato, impossibilitando a realização plena do seu objeto e frustrando as legítimas expectativas do consumidor quando da contratação do seguro de saúde.
2) No caso dos autos, a necessidade e urgência da cirurgia a que foi submetida a consumidora foram comprovadas pelos documentos que acompanharam a petição inicial. A Lei 9656/98, com a redação dada posteriormente dispõe no seu art. 35-C: “É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos: I – de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente e, II – de urgência, assim entendidos os resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional.” Ademais, dispõe a Lei 9656, art. 12: “São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, seguindo as seguintes exigências mínimas: (...) V – quando fixar períodos de carência (...) c) Prazo máximo de vinte e quatro horas para cobertura dos casos de urgência e emergência. VI – reembolso, em todos os tipos de produtos que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou beneficiados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de 30 dias após a entrega da documentação adequada. Assim, devida a indenização pelos danos materiais sofridos pela parte autora recorrida que arcou com as despesas médico-hospitalares. Certo seria também a condenação por danos morais tendo em vista a dor moral suportada pela autora que teve de arcar com tais despesas, pena de ver-se em risco à sua própria saúde por desídia da parte ré/recorrente que desatendeu o dever obrigacional decorrente da lei anteriormente mencionada. Contudo, como a autora não recorreu do indeferimento dos danos morais, resta apenas neste grau recursal apreciar tão somente a matéria devolvida para reexame, pelo que mantenho a sentença recorrida nos seus próprios termos.
3) RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. Condenada a recorrente ao pagamento das custas e honorários advocatícios em 10% do valor da condenação.
ACÓRDÃO
Acordam os Senhores Juizes da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, LUIS EDUARDO YATSUDA ARIMA - Relator, WILDE MARIA SILVA JUSTINIANO RIBEIRO - Vogal, DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI - Vogal, sob a Presidência da Senhora Juíza WILDE MARIA SILVA JUSTINIANO RIBEIRO, em proferir a seguinte decisão: CONHECIDO. IMPROVIDO. UNÂNIME, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 22 de novembro de 2011
Juiz LUIS EDUARDO YATSUDA ARIMA
Relator

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011


STJ
Crime em navio ancorado em porto é de competência da Justiça estadual
A 3ª vara Criminal do Guarujá/SP deverá processar e julgar a ocorrência de homicídio culposo em navio ancorado para carregamento. A 3ª seção do STJ entendeu que o simples fato de o crime ter ocorrido em embarcação de grande porte não atrai a competência da JF de Santos/SP.
Segundo a perícia, dois estivadores foram atingidos enquanto estavam na rampa de acesso à embarcação por duas pranchas metálicas móveis. A amarração teria sido feita de forma inadequada, resultando no rompimento de corrente que atrelava as pranchas ao guincho e causando o acidente.
Para o juiz do Guarujá, o crime ocorrido no carregamento do navio italiano Grande Buenos Aires deveria ser processado pela JF. O juiz da 3ª vara Federal de Santos, porém, divergiu, sustentando que a embarcação não estava em situação de internacionalidade, mas ancorado, e as vítimas não eram nem passageiros nem funcionários do navio. Daí o conflito de competência submetido ao STJ.
O ministro Gilson Dipp concordou com o entendimento do juiz Federal. Segundo o relator, a competência Federal não se configura com o simples fato de o caso ter ocorrido no interior de embarcação de grande porte. "Faz-se necessário que este se encontre em situação de deslocamento internacional ou ao menos em situação de potencial deslocamento", esclareceu.
"O que se depreende dos autos, até o momento, é que a embarcação encontrava-se ancorada, para fins de carregamento, o qual, inclusive, estava sendo feito por pessoas – no caso as vítimas – estranhas à embarcação, visto que eram estivadores e não passageiros ou funcionários desta", concluiu o ministro.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011



Eudes Quintino de Oliveira Júnior
Matar irmão tetraplégico é homicídio piedoso?
O jornal Folha de São Paulo, edição de 28/10/2011, publicou uma interessante notícia que desperta atenção não só com relação ao fato relatado, como também pelo desdobramento jurídico-penal. O fato ocorreu na cidade de Rio Claro/SP. Dois irmãos, um deles tetraplégico em razão de uma disputa de racha com o outro, a quem imputava a culpa, cogitaram colocar fim à vida do portador da deficiência. Para tanto, após a idealização conjunta, planejada para atender ao pedido do irmão acidentado, forjaram um roubo seguido de morte. O irmão executor simulou o roubo e matou com dois tiros o deficiente. Assim a notícia chegou até a autoridade policial. Posteriormente, ocorreu a confissão do irmão responsável pela morte, oportunidade em que justificou que assim agiu levado pela compaixão.
"Nem me matar eu consigo", bradava o irmão vítima da tetraplegia, clamando pela própria morte com insistentes pedidos ao irmão para matá-lo, até mesmo como obrigação moral, pois o acidente ocorreu por culpa exclusiva dele.
A evolução constante da humanidade vai transformando o pensamento do homem, direcionando-o para uma nova ordem moral, social e ética. Tanto é que os conceitos vão se definindo dentro de uma estrutura dinâmica, que se movimenta em velocidade até mesmo incompatível com a história. Basta ver que, a título de exemplo, até recentemente, o casamento, que era indissolúvel, passou a permitir o desquite e, logo em seguida, o divórcio. Esse, para sua concretização, exigia dois anos de separação de fato ou um ano judicialmente e, agora, pelo novo regramento, já é conferido sem qualquer estágio temporal. Até poderá futuramente ser pleiteado pela internet. A mesma evolução se deu com relação à homologação da união estável nas relações homoafetivas. Nenhum conceito é estático. Obrigatoriamente, segue o dinamismo necessário para o melhor aperfeiçoamento da vidahumana. A própria Constituição Federal, editada há 23 anos, coleciona mais de sessentaEmendas, todas elas resultantes de adequações legislativas favorecendo a convivência sociale as necessidades dos cidadãos. Já advertia Maximiliano: "As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de ser de toda a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social. Como, pois, recusar a interpretá-lo no sentido das concepções sociais que tendem a generalizar-se e a impor-se?"1.
Na senda desta evolução, surge agora a questão que envolve o direito de morrer. A moral e o Direito repudiam, pela sua tradição e conceituação, qualquer ato que abrevie a existência de um ser humano, mesmo que enfermo. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras legais e consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer também, em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito da modalidade de morte.
No caso sub studio seria interessante, mesmo que superficialmente, ingressar na teoria da autonomia da vontade da pessoa e perquirir a respeito do consentimento do ofendido. A pessoa, de forma consciente, pode renunciar a um bem juridicamente tutelado, considerado como irradiação da personalidade, a exemplo da vida humana?
tema é incandescente, mesclado de aspectos culturais, religiososlegaismoraiséticos esociais, trazendo cada segmento suas posições inquebrantáveis. Na sua imensidão, permiteavançar e atingir o fim da vida humanacom relevo às doenças prolongadas e irreversíveis,que exigem cuidados intensivos em razão do seu estado terminal. Nesta fase, será que ohomemque durante toda sua vida recebeu diversas modalidades de tutela, pode divorciar-se do Estado e decidir de acordo com sua autonomia, fazendo opção pela mortequando aregra é a vida? Se a autonomia da vontade integra o princípio da dignidade humana, não seria correto o paciente, para aliviar sua dor e sofrimento e evitar o descontrole sobre sua vida e funções biológicas, optasse por uma morte antecipada e suave? Caminharia a humanidade para a utopia descrita por Aldous Huxley, no Admirável Mundo Novo, quando introduziu as clínicas para moribundos?
Daí que, nosso Código Penal, elaborado em 1940, erigiu à categoria de crime de homicídio a conduta daquele que, agindo com sentimentos de piedade e compaixão, pratique ato terminativo que venha livrar a pessoa da dor e sofrimento, mesmo com o consentimento do ofendido. A intenção pode até ser interpretada como ato racional, necessário, porém não exclui o caráter ilícito do crime.
A conduta aproxima-se um pouco do homicídio praticado pela eutanásia, ou suicídio assistido, onde se leva em consideração a moléstia incurável, sem qualquer chance de reversibilidade do paciente. A diferença do caso relatado reside no fato de ser a vítima tetraplégica e não doente terminal. Assim, mesmo com as limitações impostas pela enfermidade, prevalece o direito maior, que é a vida e com amparo constitucional. Qualquer manifestação humana no sentido de abreviar o ciclo vital é considerada criminosa.
"O Código Penal Brasileiro, esclarecem MIRABETE e FABRINI, não reconhece a imputabilidade do homicídio eutanásico, haja ou não o consentimento do ofendido, mas, em consideração ao motivo, de relevante valor moral, permite a minoração da pena".2 Quer dizer, qualquer pessoa que agir imbuída de intenção piedosa e arrebatar um bem considerado indisponível, mesmo com o consentimento de seu titular, age contra legem e comete o crime de homicídio que pode até levar o rótulo de privilegiado, em razão do relevante valor social ou moral.
Pelo relato da notícia e pela intenção que norteou a conduta do irmão executor do ato, a melhor interpretação a ser dada é no sentido de que o roubo simulado apresenta-se como delito-meio diluído no crime de homicídio. Assim, decisão da causa fica por conta do Tribunal do Júri, seu juiz natural, que irá decidir a respeito do consentimento do ofendido em sua própria morte.
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1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 19ªed., 2006, p. 131.
Mirabete, Júlio Fabrini; Mirabete Renato N. Fabrini. Manual de direito penal, vol. 2., 26. 2d. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 2009, p. 32.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, advogado e reitor da Unorp

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A FAMOSA PONTE DE OURO DE VON LISTZ


por Eudes Quintino de Oliveira Júnior


A imprensa noticiou que um puxador, com maestria profissional, subtraiu um veículo e, para sua surpresa, nada agradável em razão das dificuldades apresentadas, encontrou na rabeira uma criança que dormia, por mais paradoxal que seja, o sono dos justos.  Imediatamente parou o veículo. Dirigiu-se a um telefone e contatou a autoridade policial. Apresentou-se como furtador e prontificou-se a abandonar o veículo em determinado local para que a criança fosse resgatada. Na realidade, não seria um resgate, pois não houve sequestro. Solicitou à autoridade para que advertisse os pais da criança, chamando-os de irresponsáveis e criminosos. Eles sim que deveriam ser responsabilizados criminalmente.
Apesar de hilariante, o fato vem revestido de um senso ético marcante. A intenção do furtador era somente a de subtrair o veículo, encaminhá-lo para o responsável pela encomenda, ganhar seu dinheiro e seguir a vida. A presença da criança no banco traseiro não estava na sua linha de desígnio, portanto, excluída de sua intenção delituosa. Não pretendia sequestrar, já que sua especialidade era a subtração, pura e simples, sem violência a qualquer pessoa.
Diante da ponderação subjetiva, no exato encontro do si para o sigo mesmo, conforme  Guimarães Rosa, resolveu interromper a prática do delito, não ultrapassando os limites da tentativa. Devolveu-o com a criança em seu interior. E mais: apontou os verdadeiros criminosos, como sendo os pais da criança, que a abandonaram no interior do veículo, enquanto frequentavam um bar tomando aperitivo. Esta omissão, segundo ele, poderia provocar a morte da criança, como já aconteceu em outros casos idênticos. A subtração frustrada até que foi providencial.
 Quando se vê uma atitude responsável e consciente, mesmo que seja exteriorizada por quem vive à margem da lei, renasce a esperança no homem. A vida humana ocupa o núcleo real de importância, abrindo espaço para que a consciência moral e ética fale mais alto. De repente, no desenrolar de uma ação ilícita, o infrator é tomado de sentimentos de generosidade e altruísmo, que proporcionam uma conduta totalmente contrária à vontade inicial. O que seguia pela contramão de direção, passa, pela mesma via, a conduzir-se corretamente, de forma exemplar, disciplinando o vai-e-vem irresponsável das pessoas. Faz lembrar a observação feita por José Saramago, no livro Ensaio Sobre a Cegueira, no sentido de que a ocasião, apesar de propícia, nem sempre faz o ladrão.
Amigos, hoje perdi o dia, como Tito, teria dito o furtador. Mas, no seu íntimo, agora revestido do apanágio da nobreza, tinha a consciência de ter praticado uma conduta responsável. Como Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao achar uma moeda no chão, solicitou o concurso policial para que ela fosse ter às mãos de seu proprietário. A sensação foi de um “ato bonito e exprimia um justo crepúsculo, um sentimento de alma delicada”. Não a medindo pela extensão do dano maior que pudesse provocar, como aqueles em que, em situação idêntica, arrastaram impiedosamente um menino, provocando-lhe a brutal morte. Nem mesmo para se ver impune da subtração tentada. Mas sim porque atendeu o apelo que ainda iluminava a sua tênue zona de penumbra, do crivo de justiça feito rapidamente no âmbito de seus estreitos preceitos e, imbuído de valores à moda antiga, desistiu de sua conduta ilícita. Não antes de apontar para a sociedade os verdadeiros culpados. Em razão do furto de um pão para sustentar a família, Jean Valjean, personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo, cumpriu dezenove anos de prisão. Depois, em liberdade, por voltar a acreditar nas pessoas, tornou-se um bem sucedido empresário, marcado pela sua bondade e generosidade.
A pergunta que se levanta: você, como Promotor de Justiça, denunciaria?
Há uma lei ditada por Machado de Assis na obra já referida, denominada “Lei da Equivalência das Janelas”. É simples, objetiva e adequada para toda situação: para compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuadamente a consciência. Sem reprimenda, sem coação. Basta a vontade de querer melhorar, de procurar se ajustar da melhor forma na comunidade em que vive. A lei do Estado é rude, coativa, arbitrária, quase sempre sem o retorno desejado da tão falada ressocialização. Impõe temor, mas não incute o comprometimento social. Tanto é que a lei é aceitável somente num estado profundamente imperfeito de sociedade humana. Daí, com toda razão, Dennis Lloyd afirmar na sua obra “Idéia de Lei” que “a lei é algo ruim, que só pode ser tolerado como expediente temporário, enquanto o homem permanece relutante ou incapaz de realizar uma sociedade justa”. Ou, ainda como utopicamente ambicionou Montesquieu, no “Espírito das Leis”, na realização espontânea do Direito. O pai que deve alimentos ao filho, por exemplo, sponte própria, sem a medida coativa judicial, cumpre sua obrigação.
Inserindo o fato relatado no Código Penal, que irá examiná-lo com a frieza que lhe é peculiar, com o olhar vetusto, corroído pelo tempo, verdadeiro corpo sem alma, mirando o infrator à distância, com receio de captar algum lampejo de sua sensibilidade, fatalmente fará a adequação típica da conduta e elegerá o delito de furto em sua forma tentada como o responsável para buscar a reprimenda suficiente para censurar o ilícito praticado.
O membro do Ministério Público que ainda desenvolve os passos iniciais da carreira, dedicado e extremado conhecedor das regras jurídicas penais, certamente irá denunciá-lo.
Em sua mente fica a voz da consciência, vulgarmente chamada de opinio delicti, que o adverte a todo instante a respeito do princípío da legalidade: nec delicta maneant impunita. Tudo bem, reflete o novato promotor debruçando-se sobre o inquérito policial, que, de ofício, foi instaurado pela autoridade encarregada da persecução penal. O indiciado desistiu voluntariamente de sua conduta ilícita, arrependeu-se eficazmente, restituiu o veículo ao proprietário e entregou a criança aos pais, porém, pela regra do ordenamento penal, não responderá pelo crime de furto consumado, mas sim tentado. Encontra ainda amparo nos princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade, que martirizam sua mente. Feito o ato instaurador da ação penal, sua consciência jurídica descansa no limbo reservado aos que se encontram no estágio probatório, aguardando a aprovação ou reprovação de seus tutores correcionais. Verdadeiro servidor e cumpridor da lei.
Já o promotor experiente, calejado pelos anos, pelos amontoados de processos e crimes com as páginas encerradas, antevê uma situação clara e definida de proposta de arquivamento. Nem se dá ao trabalho de terminar a leitura do procedimento policial. Remete imediatamente seu pensamento para Raskolnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievsky, relembrando o calvário que conduz ao arrependimento, a consciência que fica corroendo a alma do infrator, o castigo, não o da lei, mas o do autoflagelo, do cilício que açoita o senso moral, denunciando a ilicitude. A conclusão é que o homem, pela sua natureza, carrega bons e maus impulsos, que constantemente se digladiam, mas por maior que seja a dominação do mau, há sempre uma centelha que renova as esperanças na supremacia do bem. A conduta do larápio, vista sob este prisma, conclui o experiente representante do Parquet, nada mais é do que uma causa inonimada de exclusão de punibilidade. Se o próprio agente, após perambular pelas fases doiter criminis, decide sustar a execução do ilícito e desiste de ingressar na prazerosa área do exaurimento, é interessante para o Estado recompensá-lo com a impunidade. Von Liszt falava da existência de uma “ponte de ouro”, quer dizer, a peregrinação criminosa desenvolveu a contento para o agente, sendo bem sucedida, porém, num repente, pretende desfazer o ato e é nesse momento que surge a salvadora ponte, permitindo que retroceda e desfaça sua conduta ilícita, culminando com o regressus ab initio e a restitutio in integrum. Junte-se a este argumento a ampla e abrangente política criminal, que fundamentada se encontra a proposta de arquivamento.
As duas posições trazem consequências processuais diferenciadas. O arquivamento proporcionará ao infrator uma meditação a respeito de sua repudiada conduta. Analisará que inicialmente contrariou as normas de convivência harmônica, mas em razão de sua própria definição, a posteriori, mais incisiva do que a originária que trilhava pela senda do crime, reverteu todo o quadro e reassumiu postura do homo rectus. Quem sabe, até atingiu a decisão de escolher a própria vida, segundo a Idade da Razão, de Sartre? Em contrapartida, receberá do Estado um voto de confiança que ficará incrustado no seu recôndito moral, sua única reserva de autoprestígio. Se, por outro lado, segundo a linha inflexível do legislador penal, preenchidas as condições, o agente vai responder pelo seu ilícito perante o Juizado Especial Criminal, por se tratar de crime de pequeno potencial lesivo, que imporá a ele uma pena restritiva de direito. Realizada a Justiça da lei, com a manutenção de seu império, mas não aquela proveniente de uma decisão aprofundada a respeito dos mistérios que envolvem o ser humano.
Para a sociedade, única e exclusiva destinatária das decisões judiciais, fica o questionamento a respeito da validade da lei que interfere numa situação já definida pelo próprio agente infrator, com a sua mea culpa, que recebeu o placetda comunidade.
Muitos argumentos poderiam ser perfilados, como as histórias infindáveis narradas por Scheherazade. Cada dia um fato novo para perpetuar a história do homem. Mas, o importante é provocar a meditação a respeito desta totalmente desconhecida natureza humana, que apresenta reações inesperadas, que a todo instante provoca surpresas, muitas vezes agradáveis e obriga o homem a fazer a análise da aprovação ou reprovação jurídica.
Você utilizaria a ponte de outro de Von Liszt e denunciaria o gatuno ético? Fica a indagação.

originalmente disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/eudesquintino/2011/10/18/a-famosa-ponte-de-ouro-de-von-liszt/

quarta-feira, 12 de outubro de 2011


LEI Nº 14.536, DE 6 DE SETEMBRO DE 2011

(Projeto de lei nº 266/11, do Deputado André Soares - DEM)

Dispõe sobre a oferta de “couvert” por restaurantes, lanchonetes, bares e seus congêneres, no Estado de São Paulo

O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:
Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu promulgo a seguinte lei:
Artigo 1º - Os restaurantes, lanchonetes, bares e seus congêneres que adotam o sistema de “couvert” disponibilizarão ao consumidor a descrição clara do preço e da composição do serviço.
Parágrafo único - Para os fins desta lei, entende-se como “couvert” o serviço caracterizado pelo fornecimento de aperitivos assim definidos pelo estabelecimento, servidos antes do início da refeição propriamente dita.

Artigo 2º - Fica vedado aos estabelecimentos descritos no artigo 1° o fornecimento do serviço de “couvert” ao consumidor sem solicitação prévia, salvo se oferecido gratuitamente.
§ 1º - O serviço prestado em desconformidade com o previsto no “caput” não gerará qualquer obrigação de pagamento.
§ 2º - vetado.
Artigo 3º - A infração das disposições desta lei acarretará ao responsável infrator as sanções previstas no artigo 56 da Lei federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor, aplicáveis na forma de seus artigos 57 a 60.
Artigo 4º - Ulterior disposição regulamentar desta lei definirá o detalhamento técnico de sua execução.
Artigo 5º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias.
Artigo 6º - Esta lei entra em vigor no prazo de 30 (trinta) dias, contados a partir de sua publicação.
Palácio dos Bandeirantes, 6 de setembro de 2011.
GERALDO ALCKMIN
Eloisa de Sousa Arruda
Secretária da Justiça e da Defesa da Cidadania
Sidney Estanislau Beraldo
Secretário-Chefe da Casa Civil
Publicada na Assessoria Técnico-Legislativa, aos 6 de setembro de 2011.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011


15/09/2011 - 08h05
DECISÃO
Seguradora deve indenizar cliente que preencheu o questionário de risco incorretamente
A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão que obriga a Marítima Seguros a pagar a apólice de cliente. A seguradora havia se negado a pagar o valor contratado alegando descumprimento contratual, pois o questionário de risco teria sido preenchido incorretamente. A segurada, uma idosa de 70 anos, não poderia ser a condutora principal do veículo porque nem tinha carteira de habilitação, e o seu neto, apontado como condutor eventual, era, na verdade, o condutor habitual.

A cliente ajuizou ação de cobrança de indenização e também pedido de indenização por danos morais por não ter recebido da seguradora o valor do seu automóvel roubado. O juízo de primeiro grau condenou a seguradora a pagar, além do prêmio, três salários mínimos a título de danos extrapatrimoniais. Na apelação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reformou a sentença apenas para afastar a indenização por danos morais.

Inconformada, a seguradora recorreu ao STJ, alegando que estava obrigada a pagar indenização por risco não assumido no contrato, pois o perfil do condutor no momento do roubo – o neto da cliente – difere do perfil informado na ocasião do contrato, uma vez que a condutora principal – a idosa – não possuía carteira de habilitação.

O relator, ministro Luis Felipe Salomão, considerou que declarações inexatas ou omissões no questionário de risco do contrato de seguro não implicam, por si, a perda do prêmio. Para que ocorra a perda da indenização, é necessário que haja má-fé do segurado, com agravamento do risco por conta das falsas declarações.

Para Salomão, o fato de a segurada não possuir carteira de habilitação e ser o neto o condutor do carro não agrava o risco para a seguradora. O veículo foi roubado, de forma que não há relação lógica entre o sinistro e o fato de o motorista ter ou não carteira de habilitação, pois isso não aumenta o risco de roubo.

Além disso, o ministro destacou que o preenchimento incorreto do questionário de risco decorreu da ambiguidade da cláusula limitativa, pois, de acordo com o entendimento do tribunal estadual, uma das cláusulas do contrato dava margem para a cliente informar que o veículo seria conduzido principalmente por seu neto, no atendimento de suas necessidades. Dadas as circunstâncias, Salomão aplicou a regra interpretatio contra stipulatorem: a interpretação mais favorável ao consumidor será a adotada no caso de cláusulas ambíguas ou contraditórias. 

quarta-feira, 14 de setembro de 2011


Falta grave durante o cumprimento da pena altera data-base para concessão de benefícios
A 5ª turma do STJ decidiu que falta grave cometida por preso implica reinício da contagem do prazo para concessão de progressão do regime, mas não para livramento condicional, indulto e comutação da pena.
A decisão foi tomada em julgamento de recurso do MP contra decisão do TJ/RS, que determinou a regressão de um preso que havia cometido falta grave ao não voltar de serviço externo. O tribunal estadual determinou o retorno ao regime fechado e a perda dos dias remidos, mas não a interrupção do prazo para a concessão de novos benefícios.
O preso foi condenado a 15 anos, um mês e dez dias de reclusão, mais dez meses de detenção, e cumpria, à época da falta, regime semiaberto. O MP buscava o reconhecimento de que a prática de falta grave implica a alteração da data de início para a concessão de novos benefícios. O TJ/RS negou o recurso, dizendo que "a alteração da data-base para fins dos benefícios executórios decorre exclusivamente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, referente ao delito praticado no curso da execução penal".
O relator do caso no STJ, ministro Gilson Dipp, destacou que a Corte possui entendimento de que "a prática de falta disciplinar de natureza grave interrompe a contagem do lapso temporal para a concessão de benefícios que dependam de lapso de tempo no desconto de pena, salvo o livramento condicional, nos termos da Súmula 441, e a comutação de pena, cujos critérios para a concessão constam de sua legislação própria". Por esse motivo, o ministro determinou a reforma do acórdão para que se reconheça que a falta grave implica recomeço da contagem do prazo para progressão do regime.
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Telefone clonado inviabiliza transplante de córneas e obriga operadora a indenizar
A operadora de telefonia TIM Celulares deverá pagar indenização de R$8 mil a uma consumidora que, em virtude de ter a linha telefônica "clonada", não foi contatada para receber o transplante de córneas que tanto aguardava.
A decisão foi do 2º Juizado Especial Cível de Brasília. A TIM recorreu, mas a sentença foi mantida à unanimidade pela 2ª Turma Recursal do TJ/DF.
A autora ajuizou ação, sob o argumento de que suas duas linhas telefônicas pré-pagas foram "clonadas", prejudicando a regular utilização das mesmas, pois as ligações dirigidas a ela estavam sendo recebidas por outra pessoa. Em consequência, declara que perdeu o lugar na fila de transplantes de córnea, após quase cinco anos de espera, pois a central do Sistema Nacional de Transplantes não logrou contatá-la nos números disponibilizados, dada a ocorrência da fraude.
Na análise processual, a juíza aponta que a TIM não conseguiu provar que os créditos inseridos pela consumidora nos dois terminais pré-pagos estavam sendo consumidos por ela própria - e não por terceiro estelionatário -, limitando-se a dizer, tão somente, que a linha estava regular. Além disso, não juntou aos autos as gravações dos vários contatos que a autora manteve com sua central de atendimento, reclamando da possível fraude nas linhas telefônicas, inclusive naquela em que a atendente teria dito que uma pessoa de São Paulo vinha utilizando o número da titular.
A autora, por sua vez, apresentou comunicação de ocorrência policial noticiando a mencionada fraude, em abril de 2009, além dos números dos protocolos de atendimento fornecidos pela operadora.
Diante da manifesta falha na segurança do serviço prestado pela TIM, restou patente à magistrada o inequívoco nexo causal entre o fato do serviço e o dano experimentado pela autora, decorrendo daí a obrigação de reparar os danos. A juíza registra, ainda, que no caso em tela, a falha na segurança não gerou apenas transtornos, dissabores e contratempos, mas muito além disso, a angústia de perder o lugar na fila do cadastro nacional de transplantes.
Assim, atendendo aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, bem como de vedação do enriquecimento ilícito, a julgadora fixou o valor de R$ 8 mil a título de reparação pelos danos imateriais experimentados, quantia a ser acrescida de juros de 1% e correção monetária.

Concedido HC para desclassificar crime de homicídio em acidente de trânsito
A 1ª turma do STF concedeu HC (107801 -clique aqui) a L.M.A., motorista que ao dirigir em estado de embriaguez, teria causado a morte de vítima em acidente de trânsito. A decisão da turma, do dia 6/9, desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicídio doloso (com intenção de matar) para homicídio culposo (sem intenção de matar) na direção de veiculo, por entender que a responsabilização a título "doloso" pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime.
O julgamento do HC, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, foi retomado hoje com o voto-vista do ministro Luiz Fux que, divergindo da relatora, foi acompanhado pelos demais ministros, no sentido de conceder a ordem. A turma determinou a remessa dos autos à vara Criminal da Comarca de Guariba/SP, uma vez que, devido à classificação original do crime [homicídio doloso], L.M.A havia sido pronunciado para julgamento pelo Tribunal do Júri daquela localidade.
A defesa alegava ser inequívoco que o homicídio perpetrado na direção de veículo automotor, em decorrência unicamente da embriaguez, configura crime culposo. Para os advogados, "o fato de o condutor estar sob o efeito de álcool ou de substância análoga não autoriza o reconhecimento do dolo, nem mesmo o eventual, mas, na verdade, a responsabilização deste se dará a título de culpa".
Sustentava ainda a defesa que o acusado "não anuiu com o risco de ocorrência do resultado morte e nem o aceitou, não havendo que se falar em dolo eventual, mas, em última análise, imprudência ao conduzir seu veículo em suposto estado de embriaguez, agindo, assim, com culpa consciente".
Ao expor seu voto-vista, o ministro Fux afirmou que "o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção perante a embriaguez alcoólica eventual". Conforme o entendimento do ministro, a embriaguez que conduz à responsabilização a título doloso refere-se àquela em que a pessoa tem como objetivo se encorajar e praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
O ministro Luiz Fux afirmou que, tanto na decisão de primeiro grau quanto no acórdão da Corte paulista, não ficou demonstrado que o acusado teria ingerido bebidas alcoólicas com o objetivo de produzir o resultado morte. O ministro frisou, ainda, que a análise do caso não se confunde com o revolvimento de conjunto fático-probatório, mas sim de dar aos fatos apresentados uma qualificação jurídica diferente. Desse modo, ele votou pela concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao acusado para homicídio culposo na direção de veiculo automotor, previsto no artigo 302 do CTB (clique aqui).
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Íntegra do voto do ministro Luiz Fux
06/09/2011 PRIMEIRA TURMA
HABEAS CORPUS 107.801 SÃO PAULO
V O T O – V I S T A
PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como doloso,  implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: RT, 2005, p. 243)6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fáticoprobatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves,7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela Lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário impetrado contra acórdão denegatório de idêntica medida, sintetizado na seguinte ementa, in verbis:
HABEAS CORPUS . TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ANÁLISE APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as  dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413  do Código Processual Penal.2. O exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório - vedado na via estreita do mandamus -, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do paciente.3. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da  denúncia e com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício.4. Na hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao paciente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia o alegado constrangimento ilegal suportado em decorrência da pronúncia a título de dolo eventual, que depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente.5. Ordem denegada.
Segundo consta nos autos, o paciente foi denunciado pela prática de homicídio qualificado (art. 121, 2º, IV c/c art. 18, I, segunda parte do Código Penal), porquanto teria, na direção de veículo automotor e sob o efeito de bebidas alcoólicas, atropelado a vítima, que veio a óbito.
Pronunciado o paciente pelo delito de homicídio doloso, interpôs recurso em sentido estrito, que restou desprovido, ensejando a impetração de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, alfim denegado.
Nesta impetração, sustenta-se que o fato imputado ao paciente deve ser tipificado como homicídio culposo, uma vez que aplicável ao homicídio praticado em direção de veículo automotor por agente sob o efeito de bebidas alcoólicas o art. 302, inciso V, do CTB, na redação da Lei nº 11.275/06, in verbis:
Art. 302. ................
Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:
[...]
V - estiver sob a influência de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos. (Incluído pela Lei nº 11.275, de 2006) (Revogado pela Lei nº 11.705, de 2008)
Alega que a Lei 11.275/06 entrou em vigor após a ocorrência do fato (19/05/2002), sendo aplicável ao caso sub judice mesmo que tenha sido revogada, posto ser mais benéfica (artigo 5º, inciso XL da Constituição da República e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal).
Argumenta que a referida lei “atribui à embriaguez ao volante a condição de causa de aumento de pena em sede homicídio de trânsito culposo, impossibilitando que o estado ébrio seja considerado como justificativa do reconhecimento de dolo eventual, o que afasta a incidência do artigo 121 do Código Penal”.
Afirma que as instâncias inferiores reconheceram a ausência do “animus necandi”, de modo que, se paciente não anuiu nem aceitou o risco de produzir o resultado morte, deveria ser reconhecida a ocorrência de culpa consciente, e não de dolo eventual.
Aduz que a análise do presente writ não requer revolvimento de fatos e provas, como assentado pelo STJ, mas sim de revaloração do acervo probatório, sendo certo que não se pode atribuir automaticamente o dolo quando se trata de homicídio de trânsito decorrente de embriaguez.
Requer a desclassificação da conduta para o tipo do art. 302, “caput” da Lei n.º 9.503/97, “ainda que com o acréscimo previsto no inciso V do parágrafo único do mesmo dispositivo legal”, determinando-se a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.
A liminar restou indeferida pela Relatora.
O parecer do MPF foi pelo indeferimento do writ.
Na assentada em que teve início o julgamento, a Relatora votou pela denegação da ordem.
É o breve relato. Passo a votar.
Cuida-se de habeas corpus em que se pretende a desclassificação da conduta imputada ao paciente para o homicídio culposo previsto no Código de Trânsito Brasileiro (art. 302 do CTB).
Com efeito, dispõe o artigo 419 do CPP que o juiz remeterá os autos ao órgão competente quando se convencer da existência de crime diverso e não for competente para o julgamento. Tal desclassificação, se omitida indevidamente, importa em graves consequências para a defesa, deslocando o processo ao Júri, cujo julgamento é sabidamente atécnico e, às vezes, até mesmo apaixonado, a depender do local onde ele ocorra.
Essas implicações potencializam-se ainda mais no caso sub judice, em que as diferenças de penas entre um e outro crime são gritantes. Para se ter uma ideia, a diferença da entre as penas mínimas do crime de homicídio qualificado (12 anos) e do homicídio culposo em direção de veículo automotor (2 anos) é de 10 anos.
Outrossim, observa-se atualmente, de um modo geral, seja nas acusações seja nas decisões judiciais, certa banalização no sentido de atribuir-se aos delitos de trânsito o dolo eventual, o que se refletiu no caso em exame.
No entanto, reconhecido na sentença de pronúncia e no acórdão que a confirmou que o paciente cometera o fato em estado de embriaguez alcoólica, a sua responsabilização a título doloso somente pode ocorrer mediante a comprovação de que ele embebedou-se para praticar o ilícito ou assumindo o risco de praticá-lo. A aplicação da teoria da actio libera in causa somente é admissível para justificar a imputação de crime doloso em se tratando de embriaguez preordenada, sob pena de incorrer em inadmissível responsabilidade penal objetiva. Nesse sentido, confira-se a doutrina de Guilherme de Souza Nucci:
18. A teoria da actio libera in causa: com base no princípio de que a “causa da causa também é a causa do que foi causado”, leva-se em consideração que, no momento de se embriagar, o agente pode ter agido dolosa ou culposamente, projetando-se esse elemento subjetivo para o instante da conduta criminosa. Assim, quando o indivíduo, resolvendo encorajar-se para cometer um delito qualquer, ingere substância entorpecente para colocar-se, propositadamente, em situação de inimputabilidade, deve responder pelo que fez dolosamente – afinal, o elemento subjetivo estava presente no ato de ingerir a bebida ou a droga. Por outro lado, quando o agente, sabendo que irá dirigir um veículo, por exemplo, bebe antes de fazêlo, precipita a sua imprudência para o momento em que atropelar e matar um passante. Responderá por homicídio culposo, pois o elemento subjetivo do crime projeta-se no momento de ingestão da bebida para o instante do delito. Desenvolve a Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal de 1940 a seguinte concepção: “Ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool ou substância de efeitos análogos), do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da actio libera in causa ad libertatem relata, que, modernamente, não se limita ao estado de inconsciência preordenado, mas se estende a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência” (nessa parte não alterada pela atual Exposição de Motivos).Com a devida vênia, nem todos os casos em que o agente “deixou-se arrastar” ao estado de inconsciência podem configurar uma hipótese de “dolo ou culpa” a ser arremessada para o momento da conduta delituosa. Há pessoas que bebem por beber, sem a menor previsibilidade de que cometeriam crimes no estado de embriaguez completa, de foma que não é cabível a aplicação da teoria da actio libera in causa nesses casos. De outra parte, se suprimirmos a responsabilidade penal dos agentes que, embriagados totalmente, matam, roubam ou estupram alguém, estaremos alargando, indevidamente, a impunidad e, privilegiando o injusto diante do justo. No prisma de que a teoria da actio libera in causa (“ação livre na sua origem”) somente é cabível nos delitos preordenados (em se tratando de dolo) ou com flagrante imprudência no momento de beber estão os magistérios de Frederico Marques, Magalhães Noronha, Jair Leonardo Lopes, Jürgen Baumann, Paulo José da Costa Júnior, Munhoz Neto, entre outros, com os quais concordamos plenamente. Destacamos a responsabilidade penal objetiva que ainda impregna o contexto da embriaguez voluntária ou culposa, tratando-as como se fossem iguais à preordenada. Se é verdade que em relação a esta o Código prevê uma agravação (art. 56, II, c) também é certo que considera todas num mesmo plano para negar a isenção de pena. O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava, resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. [...] (Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243 – grifos adicionados)
Na mesma esteira de entendimento, a lição de Rogério Greco:
Pela definição de actio libera in causa fornecida por Narcélio de Queiroz, percebemos que o agente pode embriagar-se preordenadamente, com a finalidade de praticar uma infração penal, oportunidade em que, se vier a cometê-la, o resultado lhe será imputado a título de dolo, sendo, ainda, agravada a sua pena em razão da existência da circunstância agravante prevista  no art. 61, II, “I”, do Código Penal, ou, querendo ou não se embriagar, mas sem a finalidade de praticar qualquer infração penal, se o agente vier a causar um resultado lesivo, este lhe poderá ser atribuído, geralmente, a título de culpa. (Curso de Direito Penal: parte geral, 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p.455 - grifos adicionados)
Ademais, a produção de um resultado lesivo causada pela violação de um dever objetivo de cuidado reúne condições suficientes para a configuração de crime culposo, tornando despicienda a alusão à teoria da actio libera in causa. Confira-se a doutrina de Zaffaroni e Pierangeli:
Vimos a estrutura do tipo culposo, e ela revela-nos claramente que quando aquele que se coloca em estado ou situação de inculpabilidade viola um dever de cuidado, está preenchendo os requisitos da tipicidade culposa, e não há necessidade de recorrer-se à teoria da actio libera in causa.
Aquele que bebe até embriagar-se, sem saber que efeitos o álcool causa sobre seu psiquismo, ou quem “para experimentar”, ingere um psicofármaco cujos efeitos desconhece, ou quem injuria outro sem considerar que pode ele ter uma reação violenta, está, obviamente, violando um dever de cuidado. Se sua conduta violadora do dever de cuidado, em qualquer desses casos, causa uma lesão a alguém, teremos perfeitamente configurada a tipicidade culposa, sem que seja necessário recorrer à teoria da actio libera in causa.Isto porque a conduta típica violadora do dever de cuidado é, precisamente, a de beber, ingerir o psicofármaco e injuriar, respectivamente, e, no momento de cometer este injusto culposo, o sujeito encontrava-se em estado e em situação de culpabilidade, pelo que é perfeitamente reprovável. Consequentemente, não tem sentido falar de actio libera in causa culposa, devendo o âmbito dessa teoria reduzir-se ao dolo.  (Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 2011, p. 460 – grifo adicionado)
In casu, segundo os termos em que a denúncia foi formalizada, tem-se a presunção de que o agente assumiu o risco de causar a morte da vítima em virtude de estar embriagado. Eis o teor da peça acusatória:
Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, no dia 19 de maio de 2.002, por volta das 07h00, no cruzamento da Rua Presidente Vargas com a Rua 13 de Maio , na cidade de  Pradópolis, nesta comarca, L. A. M., qualificado a fls. 68/71, agindo com animo homicida e mediante o emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima, produziu em Eliete Alves de Oliveira os ferimentos descritos no exame necrosc6pico de fls. 31 , os quais foram a causa eficiente de sua morte.
Segundo se apurou, o indiciado conduzia a camioneta GM D-20, placas BZC-2488, de Pradópolis/SP, pelo local dos fatos, em estado de embriaguez alcoólica (fls. 32), quando veio a atropelar a vítima, que por ali caminhava e, em decorrência dos graves ferimentos provocados por tal conduta, veio a falecer. Em razão de sua embriaguez alcoólica, o indiciado assumiu o risco de causar a morte da vítima ao conduzir um veículo automotor em via pública.O crime foi cometido com o emprego de recurso que dificultou a defesa da vítima, senhora que praticava caminhadas por recomendações medicas e andava pacificamente pelas ruas de Pradópolis e, atingida de surpresa, não teve chances de esboçar qualquer reação de defesa ou mesmo de esquivar-se do veículo automotor. [...]
(grifo adicionado)
Mediante esta mesma presunção (embriaguez – assunção do risco), o paciente foi pronunciado por homicídio doloso qualificado pelo meio que impossibilite a defesa da vítima (art. 121, § 2º, IV c/c art. 18, I, segunda parte, ambos do CP). Confira-se o trecho da sentença pertinente ao tema:
[...]
Não se pode recusar a constatação, evidenciada pelo exame de embriaguez alcoólica que o acusado, na data dos fatos, conduzia o veículo embriagado.
Do exame de fls. 35 constou expressamente, que o acusado apresentava sintomas indicativos de que ingeriu bebida alcoólica e em consequência estava embriagado, colocando em risco, no estado em que se encontrava, em perigo, a segurança própria ou alheia. Conclui-se que o acusado estava em estado de embriaguez alcoólica.
Assim, mostra-se absolutamente correta a conclusão no sentido de que o acusado, pelo meio e modo como agiu, assumiu o risco de produzir o resultado morte da vítima,assentindo no resultado.
[...]
(fls. 31 e 32).
O Tribunal de Justiça, por sua vez, acrescentou, em julgamento de recurso da defesa, dado não constante na sentença (velocidade) e que, portanto não poderia ser considerado para agravar a situação do paciente. Além disso, também manifestou convencimento no sentido de o dolo eventual presumir-se da direção do veículo sob o efeito de bebidas alcoólicas, mesmo rechaçando expressamente a intenção de matar, in litteris:
Com efeito, é bem verdade que não restou comprovado que o réu tinha intenção de matar a vítima; porém, considerando que conduzia seu veículo embriagado e em velocidade incompatível com a localidade, entendo que não se importava com as possíveis consequências, o que evidentemente, caracteriza dolo eventual. Assim, havendo indícios de existência de crime doloso contra a vida, entendo acertada a decisão de pronúncia" (fls. 45). (grifo adicionado)
Consectariamente, observa-se ter havido mera presunção acerca do elemento volitivo imprescindível para configurar-se o dolo, não se atentando, pois, para a distinção entre dolo eventual e culpa consciente. Em ambas as situações ocorre a representação do resultado pelo agente.
No entanto, na culpa consciente este pratica o fato acreditando que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Nelson Hungria traça com nitidez a diferença entre as duas situações mentais, in litteris:
Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta a anuência ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de supereminência do resultado e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocorrerá” (Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 1., p. 116-117)
No mesmo sentido os ensinamentos de Heleno Cláudio Fragoso:
[...] assumir o risco significa prever o resultado como provável ou possível e aceitar ou consentir sua superveniência. O dolo eventual aproxima-se da culpa consciente e dela se distingue porque nesta o agente, embora prevendo o resultado como possível ou provável não o aceita nem consente. Não basta, portanto, a dúvida, ou seja, a incerteza a respeito de certo evento, sem implicação de natureza volitiva. O dolo eventual põe-se na perspectiva da vontade, e não da representação, pois, esta última, pode conduzir também a culpa consciente. Nesse sentido já decidiu o STF (RTJ, 351/282). A rigor, a expressão 'assumir o risco' é imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento. (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado)
Portanto, do exame descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas consentindo em que produziria o resultado, o qual pode até ter previsto, mas não assentiu que ocorresse.
Vale ressaltar que o exame da presente questão não se situa no âmbito do revolvimento do conjunto fático-probatório, mas importa, isto sim, em revaloração dos fatos postos nas instâncias inferiores, o que é viável em sede de habeas corpus. Confiram-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990.
Por fim, vale ressaltar que a Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se mostrou mais favorável ao paciente. Ao  contrário, previu causa de aumento de pena para o crime em tese por ele praticado, de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).
Ex positis, voto pela concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.
É como voto.

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